O direito do arrendamento é inelutavelmente marcado por uma tensão constante entre locador e locatário. De um lado temos os interesses legítimos de uma parte versus os interesses legítimos da outra.
Sendo o inquilino tradicionalmente visto como a parte mais fraca da relação jurídica arrendatícia, é natural que as normas jurídicas existentes no direito do arrendamento procurem proteger o locador.
Havendo sempre riscos (reais e significativos, diga-se), de que a legislação em vigor, em busca de equilibrar os pratos da balança, force um desequilíbrio em que acabe por ser o senhorio a materializar as vestes da parte mais fraca, em virtude do caracter impositivo da legislação e da diferença de tratamento existente em situações idênticas.
Um exemplo paradigmático desta situação é a do inquilino que incumpre a sua principal obrigação – de pagamento pontual da renda – durante largos meses, até que o senhorio resolve avançar com uma acção judicial de despejo, onde peticiona o reconhecimento judicial da resolução do contrato de arrendamento com justa causa, o pagamento das rendas e desocupação do local. Entre contestação, muitas vezes infundada e a roçar a litigância de má-fé (no m/ modesto entendimento, quando o locador alega que pagou em dinheiro a renda, sendo que sempre efectuou o pagamento por transferência bancária, sendo apenas os meses em falta, que motivam precisamente a acção de despejo, que pagou em dinheiro, ou faz proba cabal do facto alegado – pagamento – ou deverá considerar-se que perante a ausência de qualquer prova minimamente segura, litiga de má-fé), realização de audiência de julgamento, sentença, posterior recurso, e ainda eventual necessidade de execução de sentença para prestação de facto (entrega do imóvel), podem, facilmente, decorrer dois ou mais anos, sem que o locador receba o valor devido a título de rendas, pretensão que pode vir a ficar totalmente gorada com inquilinos que sejam mal-intencionados e estejam, previamente, em situação de falência.
Assim, para ser acautelada tal situação, o NRAU, artigo 14º/4 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), criou o incidente de despejo imediato.
Estatui o artigo 14º/3 do NRAU a obrigação genérica de obrigação de pagamento das rendas na pendência da acção de despejo, acrescentando o nº 4 do aludido normativo que “se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.”
Na prática, caso o Inquilino Réu não proceder ao pagamento de duas ou mais rendas, pode o Senhorio Autor requerer a notificação do Réu para, em 10 dias, proceder ao pagamento das rendas, com a necessária indemnização moratória que, nesta data se cifra em 20% (art. 1041º/1 CC), sendo que caso o não faça, o Tribunal decreta o despejo imediato do Réu locador – através de sentença judicial -, sendo as demais questões ponderadas à posteriori.
Deixamos, como de costume, um excelente aresto da nossa douta jurisprudência, desta feita o Acórdão do TRL, de 20/12/2018, processo nº 1830/17.0T8VFX.L1-7, cujo relator foi Carlos Oliveira, que nos ensina que:
“1. O espírito da lei ao criar o incidente de despejo imediato, agora previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do N.R.A.U., foi sempre o de não permitir que alguém pudesse, gratuitamente, desfrutar de imóvel, durante o longo período que poderia durar a acção até ao despejo efectivo, numa situação que não seria reparável por nenhuma condenação em indemnização, ou pelo pagamento das rendas vencidas, por ser frequente o despejado não ter bens bastantes para o efeito. Pretendia-se evitar que o devedor da renda permanecesse no gozo da coisa injustificadamente e à custa alheia.
2. Não é totalmente inconstitucional a interpretação segundo a qual os meios de defesa oponíveis ao incidente de despejo imediato previsto no Art. 14.º n.º 4 e 5 do NRAU devem consistir na prova do pagamento ou depósito das rendas devidas na pendência da acção de despejo, mas esse entendimento sobre os meios de defesa oponíveis deve ser objecto de interpretação restritiva em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade decorrente do acórdão n.º 673/2005 do Tribunal Constitucional.
3. Assim, por força do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e
4 da Constituição, o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção não é automático, sendo o livremente apreciado pelo juiz nos casos em que na acção de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local).
4. Deverá ser decretado o despejo imediato quando os fundamentos de defesa apresentados em nada afectam o cumprimento da obrigação de pagamento de renda e quando mais não sejam que uma forma de protelar o gozo da coisa de forma injustificada e à custa do senhorio.”
Assim, tal incidente, tem por objectivo que em casos de incumprimento real e generalizado do pagamento da renda, o inquilino possa, através de subterfúgios e artimanhas continuar a usufruir do imóvel, sem o correspondente pagamento do valor da renda acordado.
Todavia, se nos for permitida a crítica, não raras vezes o Tribunal não é suficientemente expedito no tratamento desta questão. O Senhorio, antevendo a situação de incumprimento e de eventual inviabilidade de vir a recuperar esses valores, “logo no dia seguinte” ao segundo mês que a lei exige, apresenta em juízo o requerimento a fim de despoletar a notificação a que alude o artigo 14º/4 do NRAU. Tendo de ir a despacho, pode suceder que a inércia venha a traduzir-se numa espera de um mês ou mais, para que seja expedida a notificação do Tribunal; pior, após terem passados os 10 dias conferidos ao arrendatário para comprovar o pagamento das rendas e das penalizações, não o fazendo, verifica-se um novo prazo para que seja promovida a competente sentença que, por vezes, pode demorar novo mês ou até mais.
Tal situação deveria ser acautelada com o estabelecimento de um prazo legal máximo para que o Tribunal se pronuncie e decida, atendendo aos valores em causa, cuja celeridade, inerente ao próprio instrumento criado, são essenciais, como por exemplo, com a tramitação legalmente prevista para a Intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, prevista nos artigos 104º a 108º do CPTA.
SOBRE O AUTOR DO WEBSITE:
Cristiano Pinheiro,
Advogado e Consultor Jurídico.
Dedica-se ao estudo e resolução de questões relacionadas com Direito da Família, Direito Indemnizatório e do Arrendamento.