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GUIA JURÍDICO – PROCESSO CIVIL (I): OS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO PROCESSO CIVIL PORTUGUÊS
PUBLICADO
02/04/2025
PALAVRAS CHAVES
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- Princípio do Dispositivo
- Princípio do Contraditório
- Princípio da Igualdade
- Princípio da Cooperação
- Dever de Gestão Processual
- Princípio do Inquisitório
Se tivéssemos de indicar um princípio estruturante base, seria o princípio do dispositivo. É o princípio que marca o processo civil na sua génese, aquele que, durante décadas marcou definitivamente o andamento processual. É, conforme exploraremos, um princípio que vem perdendo tração para o princípio do inquisitório, levando muitos autores a falar em dispositivo mitigado.
Neste artigo será dado especial ênfase ao princípio do inquisitório, porquanto consideramos que é aquele que, através da sua densificação, mais justiça material pode vir a trazer para a sociedade.
Mas o que é, afinal o princípio do dispositivo?
O processo civil está dependente das partes. Da sua livre disposição. Uma ação civil é proposta porque alguém (o seu Autor) assim o decidiu. São as partes e não o Estado (ao contrário do processo penal, por exemplo) quem decide instaura-lo, fazê-lo continuar ou pôr-lhe cobro (dominus litis).
Manifesta-se em três vertentes essenciais: impulso processual; delimitação do litígio; limites da sentença.
Vejam-se os artigos 259.º e seguintes, 144.º, 5.º/2/b), 609.º/1, todos do CPC.
Princípio do Contraditório
Com o próprio nome indica, o princípio do contraditório infere o direito de contraditar. Contradizer. Contestar. Encontra-se estabelecido no artigo 3.º/3 do CPC.
Determina que nenhuma decisão pode ser tomada sem previamente serem auscultadas as partes. Determina ainda que perante qualquer alegação feita pela parte, deve sempre ser dada a oportunidade de resposta à contraparte antes de ser tomada qualquer decisão.
Princípio da Igualdade
As partes devem ser iguais no processo. Não deve haver qualquer descriminação injustificada. Isto não significa, como está bom de ver, que a uma parte que seja conferida a prorrogação de um prazo – por exemplo, o alargamento do prazo para o cabeça-de-casal apresentar a relação de bens – a contraparte tenha de beneficiar de igual prorrogação. Tratar, portanto, o igual de forma igual e o diferente de forma diferente, na exata medida dessa diferença.
Ademais, este princípio mais não é do que o corolário do disposto na Constituição da República Portuguesa – vide art. 13.º/4 da CRP.
Gosto de lembrar a mim mesmo que “não basta que a lei seja igual para todos, é necessário que todos sejam iguais perante a Lei”, nos dizeres de Salvador Allende.
Princípio da Cooperação
Obriga a que as partes cooperem entre si e, especialmente, com o tribunal, na realização da justiça (descoberta da verdade material). É um princípio com várias concretizações, como, por exemplo, a obrigação de prestar informações ou de juntar documentos quando solicitado (art. 417.º 429.º, 436.º, todos do CPC).
É um princípio regularmente boicotado, porquanto as partes, muitas vezes com a passividade do Tribunal, ocultam documentos, mentem, fazem alegações que sabem não corresponder à verdade, numa atitude que é tudo menos “cooperativa”.
Enquanto não se mudar o paradigma da condenação como litigantes de má-fé, passando este instituto a ser utilizado com menor parcimónia, não nos parece credível qualquer mudança. Aliás, com a degradação dos valores sociais, como a verdade, a seriedade e outros, a tendência, estamos em crer, será de piora significativa. Em tempos idos, a palavra tinha valor. Hoje, nem o documento escrito.
Dever de Gestão Processual (ou princípio da gestão processual)
Obrigação do Tribunal de fazer uma gestão ativa do processo, adequando-o às finalidades do mesmo: obtenção de justiça e descoberta da verdade material. Está plasmado no artigo 6.º do CPC. Resulta do artigo 6.º/2 do CPC que a intervenção do juiz não é uma possibilidade, mas verdadeiramente uma obrigação, não carecendo de nenhum impulso processual nesse sentido. Com a redacção introduzida pela revisão do CPC de 2013, passou a dizer-se que o juiz “providencia oficiosamente pelo suprimento”, ao invés de o juiz “providencia, mesmo oficiosamente, pelo suprimento”.
É também este princípio que vem levando a que sejam tomadas decisões de, por exemplo, admitir reconvenção numa injunção, mesmo quando ela não está expressamente prevista, a título de exemplo, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 12/14/2022.
Princípio do Inquisitório
A cada revisão do Código de Processo Civil, reforça-se este princípio.
Tal resulta da crescente publicização do processo civil – e diga-se, muito bem.
O direito deve estar ao serviço da sociedade e a matéria deve sempre sobrepor-se à forma. Nada nos fere mais a sensibilidade jurídica de que o nosso ordenamento jurídico admita (ou mesmo pretenda) uma solução jurídica que não corresponde à verdade dos factos, devido a uma qualquer questão formal.
O processo civil é instrumental do direito material. Isto implica que é o processo civil que está ao serviço do direito material e da justiça material e não o contrário. Obter vencimento de causa pela preterição de um formalismo suprível pelo juiz ou até pela parte, quando convidada a aperfeiçoamento, não nos parece cabível num Estado de Direito democrático onde a justiça social deve ser o fim último.
A inversão desta lógica – a forma a ser soberana sobre a matéria – só criará maiores injustiças e desequilíbrios sociais, fomentados pela natural diferença no acesso à justiça daqueles que têm maior poder económico face aos que não o têm, na medida em que quanto mais qualificado for o mandatário da parte, menos sujeito estará a erros formais ou a desconhecimentos procedimentais, o que cria um natural desnível no acesso à justiça que pode e deve ser suprido pelo Estado, através do julgador.
Só assim faz sentido analisar-se a redução de articulados, pensada para o pós-2013, numa lógica pensada para que todos os documentos e factos essenciais sejam alegados com a petição inicial e com a contestação, servindo o inquisitório, muitas vezes, como uma forma de colmatar deficiências ou lacunas da argumentação ou até face a alguma testemunha ou documento que se torne relevante e não haja sido junto ou apresentado, independentemente, defendemos, de esse facto ou documento poder já ter sido junto pelas partes em momento posterior.
O princípio do Inquisitório, previsto no artigo 411.º do CPC, é um princípio que está em constante tensão com o princípio do dispositivo, num equilíbrio entre aquilo que competirá às partes alegar e provar – face àquilo que for seu ónus - e aquilo que impende (como verdadeira obrigação) ao Tribunal investigar.
Lamentamos a existência de uma visão ultrapassada do processo civil, sufragada por muitos tribunais, a reboque de anos de aplicação do código pré-2013, em que o dispositivo tinha clara preponderância face ao inquisitório. Visão que não se limita às primeiras instâncias, mas que se propaga, quiçá com maior intensidade pelas relações, onde juízes mais experientes em anos, nem sempre acompanham a evolução do pensamento legislativo.
É, de fato, fácil, fundamentar-se a rejeição de um documento essencial para a descoberta da verdade material, apresentado em audiência de julgamento – que a parte já tinha conhecimento anterior. Alega-se o regime do 423.º CPC e o documento vai rejeitado. E podemos dizer por experiência que não é incomum que a filosofia do recurso mantenha esta rejeição, dizendo-se que “o juiz não pode suprir a incúria da parte que já tinha conhecimento daquele documento em momento anterior”. Pode e deve. É a isso que obriga o 411.º do CPC, é a isso que obriga o pensamento legislativo co CPC de 2013 e é a isso que obriga a justiça material.
Analisemos alguma jurisprudência.
Começamos pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 09-05-2024. Transcrevemos o sumário:
I - Apesar da incontroversa evolução para a prevalência do princípio do inquisitório, este continua a coexistir com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, continuando a exigir-se destas não apenas o cumprimento do dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e daqueles em que se baseiem as excepções invocadas, mas também a indicação dos meios de prova adequados à satisfação do respectivo ónus probatório, a cumprir no momento processualmente fixado para o efeito.
II - O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus sobre elas recai, não podendo aceitar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes.
Neste acórdão, os Autores vieram peticionar no início da audiência de julgamento, que fosse produzida determinada prova (se oficiasse uma determinada instituição para prestar informações nos Autos). A Ré pugnou pelo indeferimento. O Tribunal deferiu, ao abrigo do disposto no artigo 411.º CPC – Princípio do Inquisitório.
Salienta-se que essa prova já havia sido requerida em momento anterior, sem que o Tribunal se tivesse pronunciado.
Não se conformando com a decisão, a Ré recorreu.
Apesar de o sumário do acórdão parecer induzir uma eventual posição contrária ao inquisitório, certo é que o Tribunal da Relação do Porto veio a considerar o recurso improcedente.
No entanto, deixa algumas notas que nos parecem desajustadas e desatualizadas, trazendo à colação dois acórdãos, um anterior a CPC de 2013 e outro posterior, numa visão que nos parece ultrapassada: a de que o juiz (através do inquisitório) só poderá intervir “para além dos [meios de prova] oportunamente produzidos ou requeridos pelas partes”.
Não poderíamos estar em maior desacordo.
No nosso entendimento, se a prova for essencial (ou muito relevante) para a descoberta da verdade material, o juiz tem, verdadeiramente, a obrigação de requerer ou produzir essa prova. Afinal, ou se procura a justiça e a verdade efetivas ou se faz de conta.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 08/09/2020.
Reproduzimos o sumário (que nos parece muitíssimo feliz).
I - A dinâmica evolutiva do processo civil tem-se afirmado no confronto dialético entre dois princípios que na aparência se contradizem – dispositivo e inquisitório – com sucessivas cedências do primeiro e prevalência do segundo, com vista à realização do verdadeiro desiderato do processo afirmado nos artigos 8.º, n.º 1 e 411.º do CPC: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.
II - O artigo 411.º do CPC estabelece um “poder-dever” do juiz que não se limita à prova de iniciativa oficiosa, como se conclui do segmento “mesmo oficiosamente”, incumbindo-lhe realizar ou ordenar as diligências relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, preservando sempre o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade.
Em audiência de julgamento, o mandatário da Ré requereu a junção aos autos das fotografias extraídas da aplicação Google que a testemunha tinha na sua posse por entender que as mesmas são úteis para a boa decisão da causa.
Os Autores deduziram oposição à junção alegando que a junção de documentos, regulada pelo artigo 423.º do CPC impedia tal possibilidade e que os documentos já poderiam ter sido juntos anteriormente.
O Tribunal proferiu despacho ordenado a junção aos Autos por lhe parecer que os mesmos eram “úteis à boa decisão da causa”.
Não se conformando, a Autora veio apresentar recurso de apelação.
Este acórdão traz também à colação um outro acórdão que capta brilhantemente a intenção legislativa, acórdão da Relação de Guimarães, de 14.05.2020 [processo n.º 659/18.2T8GMR-A.G1]
«I- O uso de poderes instrutórios está sujeito aos seguintes requisitos:
- i) a admissibilidade do meio de prova;
- ii) a sua manifestação em momento processualmente desadequado;
iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio;
e iv) a prova a produzir incidir sobre factos que é lícito ao juiz conhecer».
Concordamos, em absoluto, que nas circunstâncias acima referidas, deverá sempre ser deferida a produção de prova.
Não sendo necessário, acrescentamos, que a prova seja essencial, bastando que esta seja importante e, por isso, necessária, para o apuramento da verdade.
É, esta prova, necessária para que a verdade se apure? - Deverá ser a pergunta norteadora da decisão do juiz.